FRAGMENTOS DO PARAÍSO CANTO I [vv. 71-75 / 73.93]
Intérprete: Aysha Nascimento
Direção e edição: Alvise Camozzi
No início do primeiro Canto, no ‘proêmio’ que antecede os versos escolhidos, Dante nos conta de sua subida ao Paraíso junto a Beatriz, e de sua dificuldade em narrar o que vê, pois o intelecto humano não é capaz de lembrar da luz divina. Dante pede ajuda a Apolo; ele sabe que o Deus Pagão lhe permitirá enfrentar o desafio de descrever em palavras aquilo que não se pode. Eis que o Sol se eleva no horizonte, no momento do equinócio de primavera em conjunção com Ares. Beatriz olha o Sol, e os raios que a iluminam; Dante, por sua vez, a imita e repara como seus sentidos se alteraram: não só ele consegue fixar o astro mais do que poderia na terra, mas vê que o sol se desdobra. Os dois iniciam a subida em direção à esfera de fogo que divide o Mundo Terreno, do Céu da Lua. Por isso a luz em volta deles aumenta de maneira extraordinária. Aqui, Dante se sente TRANSUMANAR, palavra belíssima que Haroldo usa assim como Dante a escreveu. Transumanar: tornar-se algo além do humano. O aumento progressivo da luz e o doce som com o qual giram as esferas celestiais acendem em Dante o desejo de entender o que está acontecendo, e Beatriz, que parece ouvi-lo sem que ele lhe pergunte nada, explica que estão subindo, velozes, como um raio que cai, em direção invertida.
Transumanar, significar per verba
não se poria; a quem o exemplo baste,
a graça há de provar quanto ele averba.Se só eu era o que criaste por última
ó amor que o céu governas,
tu o sabes, que à luz me sublimaste.Da nova música e do brilho imenso
a razão quis saber, e me mordeu
no íntimo o desejo mais intensoE aquela, que me via como eu
veio aquietar-me a alma conturbadaNo falso engrossa o imaginar
e nada permite que tu vejas e não vê
quanto veria a vista liberada.Na terra não estás, segundo o crês;
do alto caindo o raio não fulgura veloz
como subiste à tua vez
SOBRE O PROJETO
Umberto Eco, ao lembrar a obra de Haroldo de Campos1 (de quem era grande amigo), dá particular atenção à tradução que o escritor fez de seis cantos do Paraíso de Dante, publicados em 1976 pela Editora Fontana em colaboração com o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo.
“O Paraíso é, sem dúvida, o poema mais difícil [a ser traduzido], mas os ‘cantos’ do Paraíso de Campos soam medievais e moderníssimos ao mesmo tempo. Ele conseguiu realmente recriar no seu português-brasileiro imagens e sons da Divina Comédia. […] A maioria das vezes os poetas não sabem se recriam termos arcaicos ou focam o trabalho na modernização, e quase sempre param diante das dificuldades do hendecassílabo e das limitações da rima, onde somente o deslocamento de uma palavra ao verso seguinte faz perder de vez o ‘respiro’ de Dante. Haroldo conseguiu superar todos esses obstáculos”.
Haroldo recria as imagens complexas que Dante constrói conjugando a arquitetura poética aos sons. É um material precioso e delicado este que nos legou Haroldo de Campos.
Intuitivamente fomos visitá-lo e recortá-lo numa forma híbrida entre a leitura, a escuta e o olhar, com o desejo de entregar, para quem nunca teve a sorte de se aproximar dos versos do Paraíso, uma sensação (mais que uma interpretação ou explicação) das imagens sublimes do Amor de Dante, e que ressoam como música cósmica na tradução de Haroldo.
Os vídeo-poemas que criamos são instantes de poucos minutos em que cada intérprete pode trazer consigo o Amor, presente e ausente, nas leituras gravadas à distância através das plataformas de vídeo-conferências. A coletânea se abre com um fragmento do primeiro canto, interpretado pela atriz Aysha Nascimento (a voz do filho Pietro está no vídeo que promove o projeto) e se encerra com a atriz Helena Albergaria que, junto a seus filhos Carlos e Rosa, leem os últimos versos do canto 33, que encerra o poema. Os outros cantos são de interpretação de Vinicius Neri, Gilda Nomacce, Elisa Band e a jovem Nina Brumana Camozzi.
Escolhemos tirar proveito das limitações técnicas dadas pelas plataformas de vídeo-conferências (que agora, para muitos de nós, representam a única possibilidade de encontrar as pessoas que amamos, mas que estão distantes), à procura de uma criação coletiva, ao vivo, quase performática, que pudesse sobrepor a inalcançável poesia de Dante ao nosso cotidiano, extraindo, como em um Haiku japonês, a sugestão de um único movimento, para devolver a sensação de uma imagem que possa chegar a todas e todos, independentemente do fato de conhecer mais ou menos Dante e sua obra.
Alvise Camozzi
- Jornal L’Espresso, 4 de Setembro de 2003[↩]