FRAGMENTOS DO PARAÍSO VI, CANTO XXXIII [vv. 115-120 / 127-132 / 139-145]
Intérpretes: Helena Albergaria, Carlos Santos e Rosa Albergaria
Direção e edição: Alvise Camozzi
Curadoria: Rachel Brumana
São Bernardo explica pra Dante que ele chegou do profundo inferno até o Empíreo. Por isso, após tudo o que viu, suplica a Maria que conceda força ao poeta para olhar a Mente de Deus. Maria acolhe seu pedido, e Dante está próximo da realização de todos seus desejos. A partir deste momento, a visão de Dante é tão sublime e intensa que qualquer palavra é insuficiente para exprimi-la. Dante se encontra no estado de quem sonha e, apesar de não lembrar, conserva na alma a forte impressão daquilo que sonhou. Ele não pode desviar o olhar da Mente de Deus, precisa ter a coragem para sustentar a extraordinária visão, para penetrar no infinito. A luz é sempre igual a si mesma, mas Dante sente que o que está mudando é seu estado interior.
Agora entramos nos fragmentos escolhidos, que terminam o poema.
No interior da luz, Dante acredita ver três círculos (a Trindade, o Filho e o Pai) de igual circunferência, mas de cores diferentes. Ele fixa o segundo [o Filho], que parece refletir o primeiro, e acredita ver ao seu interior uma figura humana da mesma cor do círculo, mas perfeitamente distinguível. Dante reconhece sua incapacidade em compreender o mistério da encarnação do humano no divino, até que sua mente é tocada por um raio que apaga qualquer desejo. Não tem mais forças para imaginar, sua vontade de conhecimento se apaga e ele sente-se agora parte do movimento cósmico do amor que tudo move.
Na clara, na profunda subsistência
da alta luz, Três giros vi, três cores
conclusas numa só circunferência.Íris a íris, mútuos resplendores
De dois se refletiam, e o terceiro,
Um fogo a espiralar dos dois fulgores.
O círculo que vi no outro completo,
de ti lume reflexo concebido,
circungirando o olhar por seu aspecto,O quanto vi, dentro de si, tingido
da mesma cor, mostrava nosso rosto;
pus-me a fitá-lo todo embevecido.
Ao vôo do querer faltava-me asa:
a mente então de súbito saciada
transluminou-se num fulgor de brasa.A fantasia agora está calada;
Mas já renovo as forças, que a movê-las
vai a roda a girar sempre ordenada,do Amor que move o sol e move estrelas.
SOBRE O PROJETO
Umberto Eco, ao lembrar a obra de Haroldo de Campos1 (de quem era grande amigo), dá particular atenção à tradução que o escritor fez de seis cantos do Paraíso de Dante, publicados em 1976 pela Editora Fontana em colaboração com o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo.
“O Paraíso é, sem dúvida, o poema mais difícil [a ser traduzido], mas os ‘cantos’ do Paraíso de Campos soam medievais e moderníssimos ao mesmo tempo. Ele conseguiu realmente recriar no seu português-brasileiro imagens e sons da Divina Comédia. […] A maioria das vezes os poetas não sabem se recriam termos arcaicos ou focam o trabalho na modernização, e quase sempre param diante das dificuldades do hendecassílabo e das limitações da rima, onde somente o deslocamento de uma palavra ao verso seguinte faz perder de vez o ‘respiro’ de Dante. Haroldo conseguiu superar todos esses obstáculos”.
Haroldo recria as imagens complexas que Dante constrói conjugando a arquitetura poética aos sons. É um material precioso e delicado este que nos legou Haroldo de Campos.
Intuitivamente fomos visitá-lo e recortá-lo numa forma híbrida entre a leitura, a escuta e o olhar, com o desejo de entregar, para quem nunca teve a sorte de se aproximar dos versos do Paraíso, uma sensação (mais que uma interpretação ou explicação) das imagens sublimes do Amor de Dante, e que ressoam como música cósmica na tradução de Haroldo.
Os vídeo-poemas que criamos são instantes de poucos minutos em que cada intérprete pode trazer consigo o Amor, presente e ausente, nas leituras gravadas à distância através das plataformas de vídeo-conferências. A coletânea se abre com um fragmento do primeiro canto, interpretado pela atriz Aysha Nascimento (a voz do filho Pietro está no vídeo que promove o projeto) e se encerra com a atriz Helena Albergaria que, junto a seus filhos Carlos e Rosa, leem os últimos versos do canto 33, que encerra o poema. Os outros cantos são de interpretação de Vinicius Neri, Gilda Nomacce, Elisa Band e a jovem Nina Brumana Camozzi.
Escolhemos tirar proveito das limitações técnicas dadas pelas plataformas de vídeo-conferências (que agora, para muitos de nós, representam a única possibilidade de encontrar as pessoas que amamos, mas que estão distantes), à procura de uma criação coletiva, ao vivo, quase performática, que pudesse sobrepor a inalcançável poesia de Dante ao nosso cotidiano, extraindo, como em um Haiku japonês, a sugestão de um único movimento, para devolver a sensação de uma imagem que possa chegar a todas e todos, independentemente do fato de conhecer mais ou menos Dante e sua obra.
Alvise Camozzi
- Jornal L’Espresso, 4 de Setembro de 2003[↩]