FRAGMENTOS DO PARAÍSO CANTO II [vv. 22-43]
Intérprete: Vinícius Neri
Direção e edição: Alvise Camozzi
Dante e Beatriz sobem, desejando chegar ao Empíreo, mais velozes que uma flecha que, quando lançada, chega até o alvo. A metáfora da flecha que sobe rápida e precisa é imediata e límpida, segue uma imagem magnífica e puramente sensorial, de fato, feita de ar e luz, cristais e pedras preciosas e vapor. O fragmento paira nessa sensação maravilhosa de prazer e encantamento, ensolarado e úmido, no qual Dante se encontra antes de refletir junto a Beatriz sobre a natureza do lugar: o céu da Lua. São os versos que seguem do fragmento escolhido. Dedicados a observações de natureza astronômica, sobre as manchas da lua, pois é o céu da Lua que os dois atravessam, na subida até o Sol.
Acima Beatriz, e eu que a mirava
e tão depressa quanto a flecha pousa
e voa e da balestra se destravamaravilhei suspensa duma coisa
nunca vista ao olhar
Nuvem que nos houvesse obnubilado
lúcida, espessa, sólida e polida,
do sol quase-diamante ensolarado;recebeu-nos a eterna margarida
no dentro, como água que recebe
raio de luz permanecendo unida.Se eu era corpo aqui não se concebe
Como uma dimensão a outra satura
Senão quando num corpo outro se embebe,Mais ainda o desejo em nós se apura
De ver aquela essência onde aparece
O homem a Deus unindo-se com natura.
SOBRE O PROJETO
Umberto Eco, ao lembrar a obra de Haroldo de Campos1 (de quem era grande amigo), dá particular atenção à tradução que o escritor fez de seis cantos do Paraíso de Dante, publicados em 1976 pela Editora Fontana em colaboração com o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo.
“O Paraíso é, sem dúvida, o poema mais difícil [a ser traduzido], mas os ‘cantos’ do Paraíso de Campos soam medievais e moderníssimos ao mesmo tempo. Ele conseguiu realmente recriar no seu português-brasileiro imagens e sons da Divina Comédia. […] A maioria das vezes os poetas não sabem se recriam termos arcaicos ou focam o trabalho na modernização, e quase sempre param diante das dificuldades do hendecassílabo e das limitações da rima, onde somente o deslocamento de uma palavra ao verso seguinte faz perder de vez o ‘respiro’ de Dante. Haroldo conseguiu superar todos esses obstáculos”.
Haroldo recria as imagens complexas que Dante constrói conjugando a arquitetura poética aos sons. É um material precioso e delicado este que nos legou Haroldo de Campos.
Intuitivamente fomos visitá-lo e recortá-lo numa forma híbrida entre a leitura, a escuta e o olhar, com o desejo de entregar, para quem nunca teve a sorte de se aproximar dos versos do Paraíso, uma sensação (mais que uma interpretação ou explicação) das imagens sublimes do Amor de Dante, e que ressoam como música cósmica na tradução de Haroldo.
Os vídeo-poemas que criamos são instantes de poucos minutos em que cada intérprete pode trazer consigo o Amor, presente e ausente, nas leituras gravadas à distância através das plataformas de vídeo-conferências. A coletânea se abre com um fragmento do primeiro canto, interpretado pela atriz Aysha Nascimento (a voz do filho Pietro está no vídeo que promove o projeto) e se encerra com a atriz Helena Albergaria que, junto a seus filhos Carlos e Rosa, leem os últimos versos do canto 33, que encerra o poema. Os outros cantos são de interpretação de Vinicius Neri, Gilda Nomacce, Elisa Band e a jovem Nina Brumana Camozzi.
Escolhemos tirar proveito das limitações técnicas dadas pelas plataformas de vídeo-conferências (que agora, para muitos de nós, representam a única possibilidade de encontrar as pessoas que amamos, mas que estão distantes), à procura de uma criação coletiva, ao vivo, quase performática, que pudesse sobrepor a inalcançável poesia de Dante ao nosso cotidiano, extraindo, como em um Haiku japonês, a sugestão de um único movimento, para devolver a sensação de uma imagem que possa chegar a todas e todos, independentemente do fato de conhecer mais ou menos Dante e sua obra.
Alvise Camozzi
- Jornal L’Espresso, 4 de Setembro de 2003[↩]