FRAGMENTOS DO PARAÍSO IV, CANTO XXIII [vv. 94-103]
Intérprete: Elisa Band
Direção e edição: Alvise Camozzi
Curadoria: Rachel Brumana
Estamos na última parte do poema, no primeiro dos três céus mais altos do paraíso, quando o leitor é introduzido a ‘cândida rosa’ e a visão de Deus. O episódio é dedicado à aparição de Cristo e de todos os beatos, dentre os quais emerge Maria. No começo do Canto, Dante entende que Beatriz está à espera de algo ou alguém, como uma mãe passarinho que espera o levantar do sol para procurar comida para seus filhotes. A metáfora corresponde ao tema dos versos que seguem: a relação entre mãe e filho, que idealmente está ao centro de todo o Canto XXIII. Apesar dos limites humanos, Dante olha e vê Beatriz, a luz e a beleza que a envolvem. Até onde sua poesia consegue, descreve o indescritível, além de Beatriz e do jardim florido das ‘Estrelas Fixas’ – de onde aparece Cristo, os Beatos e a Mãe, que é a luz mais intensa em volta da qual o arcanjo Gabriel rodeia luminoso, como uma coroa.
De dentro do céu, desce um facho de luz formando um círculo como uma coroa, que em volta dela começou a girar.
Qualquer melodia humana que suavemente soa na terra, atraindo o animo dos homens, pareceria uma nuvem rasgada pelo trovão se comparada ao som da lira que girava ao redor da safira que iluminava o céu brilhando [e Maria diz] eu sou amor angélico.
Do interno céu
um facho desestrela em círculo formado
Qual coroa
E cingiu-a e girou em torno delaA melodia
Que mais suave soa na terra
E as almas para si mais tiraSeria nuvem que esfacela e troa
Se comparada às cordas dessa lira
Onde a safira se cora
E vejo que dela o céu mais claro se ensafiraEu sou
amor angélico
SOBRE O PROJETO
Umberto Eco, ao lembrar a obra de Haroldo de Campos1 (de quem era grande amigo), dá particular atenção à tradução que o escritor fez de seis cantos do Paraíso de Dante, publicados em 1976 pela Editora Fontana em colaboração com o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo.
“O Paraíso é, sem dúvida, o poema mais difícil [a ser traduzido], mas os ‘cantos’ do Paraíso de Campos soam medievais e moderníssimos ao mesmo tempo. Ele conseguiu realmente recriar no seu português-brasileiro imagens e sons da Divina Comédia. […] A maioria das vezes os poetas não sabem se recriam termos arcaicos ou focam o trabalho na modernização, e quase sempre param diante das dificuldades do hendecassílabo e das limitações da rima, onde somente o deslocamento de uma palavra ao verso seguinte faz perder de vez o ‘respiro’ de Dante. Haroldo conseguiu superar todos esses obstáculos”.
Haroldo recria as imagens complexas que Dante constrói conjugando a arquitetura poética aos sons. É um material precioso e delicado este que nos legou Haroldo de Campos.
Intuitivamente fomos visitá-lo e recortá-lo numa forma híbrida entre a leitura, a escuta e o olhar, com o desejo de entregar, para quem nunca teve a sorte de se aproximar dos versos do Paraíso, uma sensação (mais que uma interpretação ou explicação) das imagens sublimes do Amor de Dante, e que ressoam como música cósmica na tradução de Haroldo.
Os vídeo-poemas que criamos são instantes de poucos minutos em que cada intérprete pode trazer consigo o Amor, presente e ausente, nas leituras gravadas à distância através das plataformas de vídeo-conferências. A coletânea se abre com um fragmento do primeiro canto, interpretado pela atriz Aysha Nascimento (a voz do filho Pietro está no vídeo que promove o projeto) e se encerra com a atriz Helena Albergaria que, junto a seus filhos Carlos e Rosa, leem os últimos versos do canto 33, que encerra o poema. Os outros cantos são de interpretação de Vinicius Neri, Gilda Nomacce, Elisa Band e a jovem Nina Brumana Camozzi.
Escolhemos tirar proveito das limitações técnicas dadas pelas plataformas de vídeo-conferências (que agora, para muitos de nós, representam a única possibilidade de encontrar as pessoas que amamos, mas que estão distantes), à procura de uma criação coletiva, ao vivo, quase performática, que pudesse sobrepor a inalcançável poesia de Dante ao nosso cotidiano, extraindo, como em um Haiku japonês, a sugestão de um único movimento, para devolver a sensação de uma imagem que possa chegar a todas e todos, independentemente do fato de conhecer mais ou menos Dante e sua obra.
Alvise Camozzi
- Jornal L’Espresso, 4 de Setembro de 2003[↩]