FRAGMENTOS DO PARAÍSO III, CANTO XIV [vv. 109-123]
Intérprete: Gilda Nomacce
Direção e edição: Alvise Camozzi
A imagem que abre o canto é tão maravilhosa e ao mesmo tempo tão cotidiana que a narração do Poeta nos desnorteia: a água num vaso redondo move-se do centro até a orla e vice-versa dependendo do fato de batermos o vaso externamente ou internamente. Assim Dante compara o dizer de São Tomé com o de Beatriz que, como sempre, antecipa seu acompanhante e responde à pergunta que Dante acaba de pensar: sobre a luz dos beatos. Novamente o som, feito palavra, nos rodeia na leitura do Canto, iluminando-nos: duas coroas giram e cantam, como quem dança em círculo. Ouvimos então a voz de Salomão – que Dante diz ser como a do anjo Gabriel na Anunciação. Outras dúvidas do Poeta sobre a natureza das coisas, terrenas e ultra-terrenas; outras respostas doces e precisas de Beatriz.
Num instante, o desejo dos beatos, que pairaram todos em volta, ao imaginar o corpo deles perdido, produz uma luz tão forte, que Dante não consegue ver mais nada, a não ser Beatriz. Mas ela também é tão bela que o poeta não pode sustentar o olhar. Quando tudo parece se acalmar, Dante ergue o rosto e repara que ele e Beatriz estão subindo, no céu vermelho de Marte. É aqui que começa o fragmento:
Vindas de lados opostos, movem-se luzes que cintilam intensamente quando se sobrepõem. Vemos agora pontos minúsculos que se agitam em direções diferentes – alguns rápidos, outros devagar – como faz a poeira quando a luz atravessa uma veneziana e desenha de luz o espaço, riscando a sala. As luzes são tantas e contíguas, como os sons das cordas da harpa e do violão, tão doces e contínuos que não conseguimos entender nota por nota: assim aparecem juntos, como uma melodia complexa que jamais capturou tanto todos os nossos sentidos.
De ponta a ponta, embaixo como acima,
movem-se luzes, cintilando forte
no conjugar-se e no passar por cima;assim, retas e curvas, como à sorte,
velozes, tardas, cambiando à vista,
deslocam-se minúcias em coorte,longas e curtas, como quando o raio lista
a sombra, com engenho e arte erguida
nas casas, onde a luz do sol insista.E como a viola e a harpa colorida
unindo cordas, fazem doce trino
mesmo que a nota passe impercebida,
das luzes vinha um canto cristalinoTanto se enamoraram meus sentidos
dessa harmonia, qual por outra cousa
jamais ficaram tão submetidos.
SOBRE O PROJETO
Umberto Eco, ao lembrar a obra de Haroldo de Campos1 (de quem era grande amigo), dá particular atenção à tradução que o escritor fez de seis cantos do Paraíso de Dante, publicados em 1976 pela Editora Fontana em colaboração com o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo.
“O Paraíso é, sem dúvida, o poema mais difícil [a ser traduzido], mas os ‘cantos’ do Paraíso de Campos soam medievais e moderníssimos ao mesmo tempo. Ele conseguiu realmente recriar no seu português-brasileiro imagens e sons da Divina Comédia. […] A maioria das vezes os poetas não sabem se recriam termos arcaicos ou focam o trabalho na modernização, e quase sempre param diante das dificuldades do hendecassílabo e das limitações da rima, onde somente o deslocamento de uma palavra ao verso seguinte faz perder de vez o ‘respiro’ de Dante. Haroldo conseguiu superar todos esses obstáculos”.
Haroldo recria as imagens complexas que Dante constrói conjugando a arquitetura poética aos sons. É um material precioso e delicado este que nos legou Haroldo de Campos.
Intuitivamente fomos visitá-lo e recortá-lo numa forma híbrida entre a leitura, a escuta e o olhar, com o desejo de entregar, para quem nunca teve a sorte de se aproximar dos versos do Paraíso, uma sensação (mais que uma interpretação ou explicação) das imagens sublimes do Amor de Dante, e que ressoam como música cósmica na tradução de Haroldo.
Os vídeo-poemas que criamos são instantes de poucos minutos em que cada intérprete pode trazer consigo o Amor, presente e ausente, nas leituras gravadas à distância através das plataformas de vídeo-conferências. A coletânea se abre com um fragmento do primeiro canto, interpretado pela atriz Aysha Nascimento (a voz do filho Pietro está no vídeo que promove o projeto) e se encerra com a atriz Helena Albergaria que, junto a seus filhos Carlos e Rosa, leem os últimos versos do canto 33, que encerra o poema. Os outros cantos são de interpretação de Vinicius Neri, Gilda Nomacce, Elisa Band e a jovem Nina Brumana Camozzi.
Escolhemos tirar proveito das limitações técnicas dadas pelas plataformas de vídeo-conferências (que agora, para muitos de nós, representam a única possibilidade de encontrar as pessoas que amamos, mas que estão distantes), à procura de uma criação coletiva, ao vivo, quase performática, que pudesse sobrepor a inalcançável poesia de Dante ao nosso cotidiano, extraindo, como em um Haiku japonês, a sugestão de um único movimento, para devolver a sensação de uma imagem que possa chegar a todas e todos, independentemente do fato de conhecer mais ou menos Dante e sua obra.
Alvise Camozzi
- Jornal L’Espresso, 4 de Setembro de 2003[↩]